Exagerar na comilança pode ter efeitos bem menos relevantes do que você imagina, de acordo com a ciência.
"Quanto posso engordar em uma única refeição?"
A resposta curta para essa
pergunta seria: Não muito.
Claro que todos nós já vimos
aqueles casos de pessoas tão obesas que nem conseguem levantar de uma cama, mas seria ingênuo pensar que eles ficaram
desse jeito da noite pro dia.
E enquanto as pessoas tendem a
subestimar quanto peso elas podem ganhar no longo prazo, elas também tendem a
superestimar o quanto podemos engordar em uma única refeição hipercalórica.
Aparentemente, isso tem até nome:
Pocrescofobia - que é o medo da
gordura ou, mais precisamente, um medo persistente e anormal de ganhar peso,
que se transforma em um desejo compulsivo de evitar todas as coisas que podem
resultar em ganho de peso.
É praticamente um precursor de outros transtornos alimentares piores, como anorexia e bulimia.
Mas, na realidade, comer muito em
uma única refeição não vai lhe engordar. Pelo menos não de maneira relevante.
Provavelmente, ir a um rodízio de pizza e comer até sair rolando vá resultar em
um ganho irrelevante de gordura no curto prazo, especialmente se você mantiver
hábitos saudáveis durante a maior parte dos seus dias.
Mas por que quando nos pesamos no
dia seguinte a uma jacada estamos um, dois, às vezes quatro quilos mais
pesados?
Vamos dar uma olhada mais a fundo
no que a ciência tem a dizer sobre o assunto.
Por Que Comemos Tanto?
Um possível explicação para isso tem origem na sobrevivência e evolução da espécie. Inclusive, no livro Sapiens - Uma breve história da humanidade,
de Yuval Noah Harari, o autor cita a teoria do “gene guloso”:
“É intrigante tentar entender por
que nos empanturramos com os alimentos mais doces e mais gordurosos que
conseguimos encontrar, até considerarmos os hábitos alimentares dos nossos
ancestrais caçadores-coletores. Nas savanas e florestas que eles habitavam,
alimentos doces e calóricos eram extremamente raros, e a comida em geral era
escassa. Um caçador-coletor típico de 30 mil anos atrás só tinha acesso a um
tipo de comida doce: frutas maduras.
Se uma mulher da Idade da Pedra
se deparasse com uma árvore repleta de figos, a coisa mais razoável a fazer era
ingerir o máximo que pudesse imediatamente, antes que um bando de babuínos
comesse tudo. Hoje, podemos morar em apartamentos com geladeiras abarrotadas,
mas nosso DNA ainda pensa que estamos numa savana. É isso que nos motiva a
comer um pote inteiro de sorvete quando encontramos um no freezer e fazê-lo
descer com uma Coca-Cola grande”.
E isso faz bastante sentido. Os
humanos que conseguiam comer um bocado e armazenar as calorias excessivas em
forma de gordura tinham uma certa vantagem em um futuro período de escassez de alimentos
quanto a sobrevivência e reprodução. E se reproduzindo transmitiam essa carga
genética a seus sucessores, que também conseguiam comer mais e estocar mais
gordura...
E Quanta Gordura Podemos Estocar em uma “Jacada”?
Matematicamente falando, para
ganhar 1 kg de gordura você precisaria ingerir aproximadamente 7700 calorias
(kcal). Logo, se você comesse 1000 kcal a mais por dia, você poderia ganhar quase 1kg de gordura em
uma semana.
Mas não se você comesse as 7000
kcal em uma única refeição. Nem mesmo metade disso (umas 3500 kcal) resultaria
em meio quilo de gordura na sua cintura. Existe um possível limite para a
quantidade de comida que seu corpo consegue transformar em gordura e armazenar
em apenas algumas horas. E o que seu corpo não conseguisse estocar nesse meio
tempo, ele tentaria queimar ou excretar.
Após uma grande refeição (ou
várias delas), você pode aumentar inconscientemente o gasto calórico por meio
da atividade física espontânea, movimentando-se mais e ficando mais inquieto.
Além disso, algumas das calorias
que você ingere são utilizadas para digerir, metabolizar e absorver o resto da
comida, e algumas ainda são queimadas na forma de calor (sua temperatura
corporal sobe levemente). Esse processo é conhecido como Termogênese Induzida
pela Dieta (TID) ou Efeito Térmico do Alimento (ETA) e representa cerca de 10%
do gasto calórico total de um adulto saudável.
A energia necessária para digerir
cada macronutriente corresponde a uma porcentagem da energia fornecida pelo
mesmo. Um grama de proteína fornece 4kcal, e seu efeito térmico (ETA) é o maior
de todos, equivalente a 20-30%. O ETA dos carboidratos, que também fornecem
4kcal/g, é de 5-10%. Já a gordura fornece cerca de 9kcal/g e seu ETA é
aproximadamente 0-3%.
Como o Corpo Faz para Armazenar Gordura
Além de usá-los como energia, seu
corpo tem duas formas de armazenar os carboidratos que você come. Ele pode
transformá-los em gordura em um processo chamado lipogênese de novo (LDN), mas em primeiro lugar ele
vai tratar de repor os estoques de glicogênio no fígado e nos músculos.
Já no caso da gordura, caso seu
corpo não a utilize como energia (na falta de carboidratos e proteínas em
excesso), só resta armazená-la como gordura corporal.
A proteína, por sua vez, será
prioritariamente usada para síntese proteica e outros propósitos metabólicos, utilizada
como energia ou raramente convertida em glicose ou gordura. Assim, o consumo de proteínas em excesso é
menos propenso a resultar em ganho de gordura.
Mas vamos ao que interessa, que
são os resultados na prática.
Em um estudo conduzido em 1982¹,
6 homens jovens e saudáveis comeram uma grande refeição composta por pão,
geléia e suco de frutas, contendo 2148 kcal em média, sendo aproximadamente 479g
de carboidratos (93% das calorias), 8g de gordura e 24g de proteína.
Carboidratos suficientes para mandar
um diabético dessa pra melhor.
Os cientistas monitoraram a Razão
de Troca Respiratória (ou Quociente Respiratório) dos participantes por
calorimetria indireta durante 10 horas após a refeição, a fim de verificar o balanço
energético e as quantidades de macronutrientes queimadas e armazenadas durante
o período.
A maior parte dos carboidratos,
346g, foi armazenada como glicogênio muscular e hepático. Os 133g restantes
foram queimados diretamente, e uma pequena parte dos carboidratos (ou do
glicogênio) estima-se que foi convertida em quase 2g de gordura através de um
processo chamado lipogênese de novo (LDN).
Apesar disso, no decorrer das
10h, os indivíduos queimaram em média 17g de gordura, ou seja, 7g a mais do que
a quantidade ingerida (8g) somada com a quantidade formada através da LDN (2g).
O gasto calórico no período foi
de cerca de 823 kcal, a taxa metabólica dos indivíduos aumentou aproximadamente
20% duas horas após a refeição e, ao final das 10h, ainda era 8% maior do que
em jejum. Também foram oxidados (queimados) 29g de proteína.
Nesse estudo os pesquisadores não
avaliaram composição corporal dos voluntários, até porque isso seria
irrelevante após uma única refeição.
Você deve estar pensando: “Também,
depois de 10h de jejum até eu queimo mais gordura do que ganho”. Pois é, embora
a refeição no estudo tenha sido o desjejum, se você jacar à noite e for dormir,
é bem provável que você faça até mais do que 10 horas de jejum após a refeição.
Agora, digamos que você passe
vários dias comendo demais, tipo o que você faz no período de festas de fim de
ano ou quando sai de férias, por exemplo. Além do mais, dificilmente comemos
apenas carboidratos demais. Mesmo quando nos empanturramos de doces, é provável
que tais doces tenham uma quantidade considerável de gordura em sua composição.
Que efeito isso poderia ter?
Diferença Entre Comer Carboidratos e Gorduras
Em outro estudo², pesquisadores
submeteram 16 voluntários (9 homens magros e 7 homens gordos), com idades entre
18 e 46 anos, a duas intervenções dietéticas hipercalóricas diferentes, cada
uma com duração de 14 dias em formato cruzado, ou seja, todos os voluntários cumpriram
as duas fases:
- Dieta com excesso calórico de 50%, unicamente através da adição de carboidratos;
- Dieta com 50% de superávit calórico em forma de gordura.
O gasto energético diário e a
oxidação de macronutrientes foram medidos através de uma sala de calorimetria
onde os sujeitos permaneceram por 23 horas nos dias 1, 7 e 14 da intervenção (os
resultados foram extrapolados para 24h).
A composição corporal dos
participantes foi avaliada por pesagem hidrostática.
Como esperado, ao fim do primeiro
dia de banquete as mudanças no peso corporal, massa magra e gordura foram
insignificantes.
Após a primeira semana, o grupo que consumiu
carboidratos em excesso amentou o peso significativamente mais do que o grupo
que consumiu gordura em excesso, aproximadamente 2,6kg vs 1,8kg. Contudo, é provável que a maior parte do peso ganho pelo
grupo dos carboidratos tenha sido em decorrência do maior armazenamento de
glicogênio hepático e muscular. O glicogênio, por sua vez, não pode ser
armazenado sozinho, sendo que cada grama de glicogênio carrega consigo cerca de
3g de água, às vezes mais, promovendo um rápido aumento de peso. Como esse peso
é armazenado nos músculos e fígado, ele acaba sendo contado como massa magra.
Ao final dos 14 dias, ambos os
grupos aumentaram o peso significativamente (2,8kg carboidratos x 2,6kg gordura),
sem diferença entre as condições. Aproximadamente 42-50% do peso ganho foi de
massa magra (1,4kg x 1,09kg) e 50-58% de gordura (1,48kg x 1,51kg), sendo que a maior ingestão de carboidratos resultou em maior ganho de massa magra (de novo, possivelmente por causa do glicogênio + água).
Sim, eles realmente ganharam
bastante gordura, mas lembre-se que esses homens estavam comendo provavelmente
mais de 1300 kcal extras por dia. Todos os dias. Por duas semanas.
O gasto energético diário
aumentou significativamente no grupo que consumiu o excesso de calorias em
forma de carboidratos. Nesse grupo, a oxidação de carboidratos aumentou (cerca
de 100%) enquanto a oxidação de gorduras diminuiu cerca de 75%, sendo quase 40%
só no primeiro dia.
Houve um pequeno aumento no gasto
calórico do grupo que consumiu gordura, o que pode ser explicado pela termogênese
(TID) e pelo aumento de peso corporal, porém a oxidação de macronutrientes não
se alterou em nenhum momento.
Segundo os autores, mais de 75%
da energia consumida em excesso foi armazenada no corpo dos voluntários. Houve
uma diferença significativa entre os grupos na eficiência com que essa energia
foi estocada. No primeiro dia, 95% da energia da gordura foi armazenada vs 90% da energia dos carboidratos. No
dia 7, a gordura manteve uma eficiência por volta de 93%, enquanto o
armazenamento dos carboidratos caiu para 77%. No último dia de superalimentação
a energia armazenada da gordura foi de 91% enquanto a dos carboidratos voltou a
aumentar para 83%.
Eles não puderam calcular quanto
de gordura foi formada a partir da lipogênese de novo, porém outro estudo que verificou os efeitos de 5 dias de
superalimentação com energia equivalente a 150% do gasto energético dos indivíduos, cujo excesso
também veio dos carboidratos (assim como no presente estudo), verificou uma LDN
equivalente a menos de 5g de gordura por dia. Mesmo o dobro disso (10g), como
verificado em outros estudos, seria praticamente insignificante. Assim, o
aumento de gordura no grupo que consumiu carboidratos em excesso parece ter
vindo principalmente da gordura consumida na dieta e da redução na oxidação
(queima) de gordura como energia.
Os cientistas concluíram que “para uma mesma
quantidade de energia, em excesso, a gordura leva a um maior acúmulo de gordura
corporal do que o carboidrato”.
O que isso quer dizer para você
Já consigo ver a galera Low-Carb
pirando. Mas antes, tenha em mente que a dieta de alta gordura citada no estudo
tinha uma quantidade substancial de carboidratos.
Não é como uma dieta cetogênica
onde 70% das calorias são provenientes de gordura e apenas 5% dos carboidratos,
mas sim uma dieta ocidental padrão repleta de carboidratos com mais 50% de
calorias extras, essas sim em forma de gordura.
Além disso, os participantes se
esbanjaram na comida todos os dias durante duas semanas. E eles eram obrigados
a comer toda a refeição fornecida pelos pesquisadores, mesmo que eles não
estivessem muito a fim naquele dia.
Para nós, que não pretendemos
fazer isso sempre, os efeitos de uma jacada vão ser muito menores do que o
ganho de gordura ocorrido no estudo.
E por que, afinal, quando nos
pesamos no dia seguinte, estamos vários quilos mais pesados se não ganhamos
tanta gordura de uma vez só?
Como visto no primeiro estudo, o
consumo excessivo de carboidratos leva a um grande armazenamento de glicogênio
no fígado e nos músculos. Além disso, conforme explicado anteriormente, cada
grama de glicogênio é armazenado junto com 3g de água. Esse número pode chegar
a 17g de água, segundo outro estudo, se você comer um monte de carboidratos e
beber bastante líquido depois de se exercitar em um ambiente quente e seco.
Se você pensar que um homem com 30kg de músculos armazena cerca de 350g de glicogênio muscular (valor
próximo ao encontrado no primeiro estudo), essa quantidade de glicogênio vai
carregar consigo, no mínimo, 1,05kg de água. Somente aí o sujeito já ganhou
1,35kg. No caso de uma mulher com 23kg de massa muscular, carregando cerca de 260g de
glicogênio e 780g de água, o aumento de peso chega facilmente a 1,04kg.
Além disso, o volume sanguíneo e
a água corporal podem variar consideravelmente em razão de exercícios físicos, dieta,
medicações, etc. Além dos carboidratos, outro fator importante que regula a
água corporal é o sal (sódio), que leva moléculas de água com ele para onde
quer que ele vá em seu corpo, causando retenção hídrica.
E claro, também temos que levar
em conta o peso da urina na bexiga e do bolo fecal no intestino, os quais, após
uma jacada homérica, provavelmente contribuirão de forma significativa no
aumento do peso.
Quanta gordura você vai armazenar,
efetivamente, vai depender da quantidade de gordura ingerida na refeição (que é armazenada com 90-95% de eficiência) e da
supressão na oxidação de ácidos graxos causada pelo alto consumo de carboidratos. Mesmo assim, segundo
os dados levantados pelos estudos citados, seria melhor exagerar na quantidade de
carboidratos do que na de gorduras, já que o excesso de carboidratos é menos propenso
a virar gordura via LDN, apesar de causar maior supressão da queima de gordura
como energia.
O Que Fazer Com Essa Informação
Claro que não estou tentando lhe
estimular a sair comendo excessivamente em todas as oportunidades que você
tiver.
Você ganha peso sim após se
refestelar em um monte de salgadinhos, docinhos e bolo de aniversário. Contudo,
se você fizer isso apenas esporadicamente, dificilmente você ganhará uma quantidade
de gordura significante.
Fazer isso todos os dias, porém, pode levar a um aumento considerável de gordura corporal, como o encontrado naquele estudo conduzido durante 14 dias.
Sabendo disso, você pode ficar menos
preocupado (ou deveria dizer pocrescofóbico) quando for convidado para ir a um
evento que você sabe que vai comer demais, como um rodízio de pizza.
A não ser que você esteja fazendo uma dieta hipocalórica bastante restrita (como aquelas normalmente feitas para perder peso). Nesse caso, há evidências de que você pode armazenar gordura com maior eficiência quando volta a comer um superávit calórico, mesmo no curto prazo.
A não ser que você esteja fazendo uma dieta hipocalórica bastante restrita (como aquelas normalmente feitas para perder peso). Nesse caso, há evidências de que você pode armazenar gordura com maior eficiência quando volta a comer um superávit calórico, mesmo no curto prazo.
Ainda assim, se você fizer isso, apenas saiba que o mundo não acabou por causa desse "furo" e que no dia seguinte você estará de volta à dieta e aos hábitos saudáveis.
"Só volte!”
Fontes:
1. Acheson KJ, Flatt JP, Jéquier E. Glycogen
synthesis versus lipogenesis after a 500 gram carbohydrate meal in man.
Metabolism. 1982 Dec;31(12):1234-40.
2. Horton TJ, Drougas H, Brachey A, Reed GW,
Peters JC, Hill JO. Fat and carbohydrate overfeeding in humans: different
effects on energy storage. Am J Clin Nutr. 1995 Jul;62(1):19-29.
3. Alex Leaf, “Can one binge make you fat”. Examine.com.
Apr 17, 2019.
4. TC Luoma, “What Really Happens When You Pig Out”.
T-Nation.com. Mar 23, 2019.
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